Capítulo 2

Fonética versus fonologia

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Introdução:

A estrutura da línguas se organiza em diferentes níveis, tais como o fonológico, o morfológico, o sintático, o semântico, o lexical etc., todos eles responsáveis por aquilo que enunciamos no nosso cotidiano.

Há, como sabemos, dois ramos da linguística que estão voltados para o estudo dos sons: a fonologia e a fonética. Ambos os termos têm origem na palavra grega que significa “som”. Vale lembrar, entretanto, que o primeiro se volta mais para aspectos funcionais, comportamentais e organizacionais dos sons, enquanto o segundo se volta mais para os aspectos físicos e fisiológicos, como vimos no capítulo anterior. Separar esses dois ramos foi uma forma encontrada para melhor identificá-los, mas é necessário apontar que eles são interdependentes. É difícil, por exemplo, estudar a função dos sonss em fazer referência às suas propriedades articulatórias e/ou acústicas,como também não podemos estudar os sons sem uma referência à sua função linguística.

Neste capítulo, retomaremos a gênese dos estudos fonológicos com seus principais precursores e, de forma mais específica, o conceito de fonema e a realidade que ele representa, sem perder de vista, contudo, que é no nível fonético que a fonologia se realiza de modo concreto. É como se os elementos fonológicos estivessem armazenados em nossa mente – ou no campo geral, social da linguagem – e a forma fonética estivesse do lado externo, permitindo a emissão concreta e audível daqueles elementos.

Gênese dos estudos fonológicos:

Até o final do século XIX, a diferença entre fonética e fonologia era uma discussão de pouco interesse, pois os estudos da época preocupa-vam-se essencialmente com a mudança linguística, portanto, voltados para as alterações fonéticas. Os estudos fonológicos ganham força no início do século XX, como Estruturalismo, quase contemporaneamente ao coroamento da Linguística como ciência com objeto e método próprio, para culminar na segunda metade desse mesmo século como Gerativismo, quando as análises fonológicas ganham grande adequação descritiva e passam a interagir com outras disciplinas e áreas. Essas duas correntes da linguística teórica do século XX – Estruturalismo e Gerativismo – são ainda hoje norteadoras da maioria dos estudos fonológicos,ao propor em conceitos que possibilitam descrição e análises dos mais diversos fenômenos das línguas do mundo.

Língua e fala:

Ferdinand Saussure, considerado o pai da linguística moderna, estabeleceu distinções claras entre “langue” (língua) e “parole”(fala); a língua como sendo o conhecimento de natureza social que permite ao indivíduo ser capaz de falar e entender os outros; a fala como o meio utilizado pelo falante para expressar esse conhecimento. Disso, depreende-se que, ao descrever o sistema linguístico, o pesquisador deve se preocupar com os elementos relativos à língua, não à fala.

Para Saussure, na língua, o sistema fônico constitui-se de um conjunto de significantes, e a função dos elementos que compõem a estrutura fônica é distingui-la de outros signos. O mais importante nessa concepção é essa individualidade entre os signos.

Saussure enfatizou o status de uma descrição de enunciados que indicasse todas e apenas as propriedades que distinguiriam um signo do outro. Sua ênfase no caráter puramente negativo do signo, entretanto, deixou algo obscuro na relação entre a realidade fonética da fala e o papel distintivo do signo no sistema da língua. O autor esteve pouco preocupado com os problemas práticos da descrição sincrônica; tampouco há evidência de que estivesse preocupado como de senvolvimento de uma noção de representação fonética ou fonêmica no sentido posteriormente postulado pelos gerativistas.

A Escola de Praga:

No início do Século XX, vários estudiosos trabalharam para elaborar as ideias seminais de Saussure. O grupo que, talvez, mais se destacou foi aquele composto pelos representantes da Escola de Praga, incluindo Nicolay Trubetzkoy e Roman Jakobson. Eles tentaram combinar a preocupação com a metodologia descritiva comum a consciência sofisticada das questões teóricas levantadas por Saussure e outros. É no livro de Trubetzkoy, Princípios de Fonologia, que podemos encontrar uma síntese dessas ideias.

Trubetzkoy entende ser necessário distinguir entre o estudo dos sons da fala, que correspondem à ‘parole’ saussuriana, do estudo dos sons da fala, que compõem os significantes dos signos da língua. Aos primeiros caberia o estudo pela fonética; aos últimos, o estudo pela fonologia.

As definições de fonologia e fonética pelos estudiosos de Praga mostram uma tentativa de vê-las diferentemente: a primeira como uma disciplina funcional e a última como uma disciplina auxiliar da linguística, reconhecendo, portanto, uma antítese que Saussure negou. Tanto para Saussure como para a escola de Praga, as duas disciplinas tinham de estar separadas. Isso representou um grande problema: tentar estabelecer uma linha de separação entre o que, por natureza, parece ser indivisível.

Representação fonêmica e representação fonética:

Um dos mais importantes aspectos da concepção de Trubetzkoy foi a “naturalidade” da relação entre as representações fonêmica e fonética de um enunciado. O fonema é visto como uma entidade ideal com características reais e identificáveis. Os traços que identificam um fonema também podem ser identificados na representação fonética. Visto que as propriedades distintivas de um fonema específico estão, para Trubetzkoy, presentes no som, a condição de naturalidade fixa o conjunto de propriedades subjacentes ao sistema fonêmico e também a relação entre as duas representações– a fonética e a fonêmica.

Trubetzkoy admite que a fonética é o primeiro passo para fonologia, e, se é assim, a fonética deve ser parte essencial da fonologia. Os dois aspectos do estudo dos sons da fala são complementares e interdependentes; eles representam graus sucessivos de abstração.

De forma ampla, podemos dizer que a fonologia se volta para os sons da língua, não para os sons da fala, o que ser ia objeto da fonética. De forma mais restrita, a fonologia se volta para a função, para o comportamento e para a organização dos sons enquanto itens linguísticos.

A análise estrutural, se aplicada ao sistema fônico, prevê que a substituição de um elemento opõe um signo a outro. Se pensarmos em uma transcrição fonética, ela apresenta detalhes importantes, mas ela não é funcional, ou seja, o contraste entre os signos não fica patente.

Em resumo, fonética e fonologia estudamos sons, de modo que a primeira está voltada para a produção, a distinção e a descrição desses sons, voltando-se para o processo da fala; sua unidade mínima é o fone. Já a fonologia volta-separa a função desses sons numa determinada língua e sua unidade mínima é o fonema, elemento dotado de propriedades distintivas, conforme veremos a seguir.

Fonema:

Larry Hyman, em seu livro Phonology: theory and analysis, apresenta três visões para o fonema:

  1. como realidade fonética;
  2. como realidade fonológica;
  3. como realidade psicológica.

O fonema como realidade fonética:

Sob a primeira perspectiva, entende-se que o fonema representa uma realidade física fonética, ou seja: sons que pertencem ao mesmo fonema compartilham propriedades fonéticas importantes. Imaginemos o fonema /s/ do Português. A ele podemos ligar as seguintes unidades fonéticas: [s], [S], [z], [Z], [x] etc.

Cabe ao fonólogo determinar quais são os sons que pertencem à mesma classe. Para alcançar tal objetivo, ele deve examinar as distribuições dos sons, verificando se os sons similares ocorrem no mesmo contexto fonético e se a substituição de um por outro implica alteração desentido. Acontecendo isso, podemos dizer que temos dois fonemas distintos, do contrário, teremos apenas dois fones para um mesmo fonema.

Uma forma bem usual para observarmos isso é por meio da utilização dos pares mínimos, dois itens lexicais que se opõem apenas pela diferença de um som. Nos itens ‘ca/s/a e ca/z/a’ (‘caça’ e ‘casa’) temos um par mínimo. Podemos observar que a substituição de /s/ por /z/ alterou o significado dos itens, logo, estamos diante de dois fonemas.

Também podemos dizer estarmos diante de pares mínimos nos seguintes exemplos:

/p/ata x /b/ata

/ʃ/á x /ʒ/á

/s/elo x /z/elo

colh/e/r x colh/ɛ/r

Fica claro que podemos distinguir cada um desses pares por apenas um segmento. Se a distinção se der por mais de um segmento, não teremos um par mínimo. Esses segmentos que tornamos signos diferentes são denominados de fonemas.

A validação de fonemas por pares mínimos soa necessária apenas em casos de sons foneticamente semelhantes, ou seja, aqueles com diferenças mínimas quanto às características fonéticas, uma vez que segmentos muito distantes do ponto de vista fonético seriam, a priori, fonemas da língua. A seguir, alguns exemplos de sons foneticamente próximos, ou semelhantes:

  • segmentos com oposição apenas quanto à vibração das cordas vocais (surdo e sonoro): [p] e [b], [s] e [z], [k] e [g] etc.
  • segmentos com oposição apenas quanto ao ponto de articulação: [p] e [t], [b] e [d], [t] e [k], etc.
  • segmentos com oposição apenas quanto ao modo de articulação: [p] e [f], [t] e [s], [d] e [z], etc.
  • vogais médias anteriores [e] e [ɛ];

Uma outra possibilidade de avaliarmos se estamos ou não diante de um fonema é verificando se os sons estão ou não em distribuição complementar, ou seja, no lugar em que um pode estar o outro não pode. No falar mineiro, por exemplo, o som /t/, como em ‘tatu’, se realiza como a fricada [tʃ] diante de [i], como em [tʃ]ia ‘tia’, ´ó[tʃ]imo ‘ótimo’, e como [t] nos demais ambientes como em [t] aco, [t] e [t]o, [t]rem. Então, podemos dizer que [t] e [tʃ] estão em distribuição complementar, e, desse modo, estamos de dois fones quer representam foneticamente o mesmo fonema /t/

Tanto a ativação de pares mínimos quanto a distribuição complementar são estratégias que nos permitem concluir sobre a função fonêmica dedeterminados segmentos.

Variação

Neste momento, é necessária uma reflexão sobre pelo menos duas formas de realização dos fonemas: uma em variação condicionada e outra em variação livre. Vejamos cada uma em separado.

Variação condicionada:

Comecemos por observar os seguintes exemplos:

Por que razão o som surdo[s], nos exemplos da primeira coluna, torna-se sonoro[z] nos dados que aparecem na segunda coluna? Certamente, isso não ocorre pela simples vontade do falante, mas pelo condicionamento provocado pelo som sonoro [d,b,u] que segue o [s]. A sonoridade desses segmentos espraia-se para o som anterior, condicionando-o a ser também realizado como sonoro, em um processo de variação condicionada a que chamamos assimilação. Em resumo, o segmento surdo assimila a sonoridade do segmento seguinte, tornando-se também sonoro.

Variação livre

Observemos os exemplos a seguir:

O conceito de variação livre não é bem visto entre os sociolinguistas, os quais defendem que toda variação é condicionada, podendo esse condicionamento ser resultado de uma restrição linguística ou social. Seguindo esse raciocínio, mesmo que o condicionamento para a variação não esteja presente nas formas linguísticas–fonológicas, sintáticas, morfológica etc.–, ele poderá estar em fatores extra linguísticos, como a faixa etária, o grau de escolaridade, o grupo social do falante, ou ainda região geográfica onde ele vive, entre outros muitos fatores.

O fonema como realidade fonológica:

Na visão característica da Escola de Praga, podemos definir o fonema como “a soma das propriedades de um som fonologicamente relevante”. Ou seja, os fonemas são definidos em termos de suas oposições dentro do sistema. Com isso, surge o entendimento do fonema e muma perspectiva notadamente funcional, qual seja a de empreender a distinção designificado entre os signos.

Atrelada a essa visão está a noção de neutralização, conceito fundamental para a fonologia estruturalista. Para compreendermos bem esse conceito, recorremos a um exemplo bastante comum no Português do Brasil no que respeita o sistema vocálico. Claramente, na posição tônica, temos um quadro de 7 vogais distintivas e, portanto, de natureza fonológica. Esse quadro se reduza 5 vogais na sílaba pretônica e a 3 na sílaba átona. Mas como isso acontece?

Comecemos comos fatos da sílaba pretônica. Nessa posição, ocorre a neutralização entre as vogais média sem pares, a saber [e] e [ɛ]; [o] e [ɔ]. Isso de dá porque a oposição entre [e] e [ɛ] se perde, dando lugar apenas a um dos segmentos. O mesmo procedimento se verifica entre [o] e [ɔ].

Contudo, a forma como esse processo ocorre não é uniforme em todas as regiões do Brasil. Para ilustrar, podemos observar itens como ‘pesada’ e ‘porrada’. Há regiões em que o resultado da neutralização favorece a presença de [e] e de [o], respectivamente, como no Sudeste; e outras que favorecem a presença do [ɛ] e do [ɔ], como em boa parte do Nordeste. Assim, o sistema pretônico, devido à neutralização, fica reduzido a 5 fonemas.

Na posição de sílaba átona final, o mesmo processo ocorre excluindo, dessa vez, todas as vogais médias, de modo que o sistema fique reduzido a apenas 3 vogais. Isso se justifica pelo fato de a distinção entre [e] e [i] e entre [o] e [u] desaparecer e, como resultado, as vogais médias [e] e [o] dão lugar a vogais altas [i] e [u], respectivamente, como nos casos de .

Esquematicamente, podemos visualizar todo esse processo de neutralização vocálica a partir do quadro seguinte, considerando a fala da região Sudeste como exemplo:

Sílaba tônica: 7 vogais Silába pretônica: 5 vogais Sílaba átona final: 3 vogais
[i] pi.co [i] pi.ca.do
[e] pe.lo [e] pe.la.do [i] pe.le, va.le, pi.que
[ɛ] ve.la [e] ve.la.do
[a] sa.ca [a] sa.ca.da [a] mo.la
[ɔ] co.co [o] co.ca.da
[o] fo.rro [o] fo.rra.do [u] fo.co, mu.ro, so.co
[u] mu.ro [u] mu.ra.do
Quadro 2 – Adaptado de Bisol e Magalhães (2014), disponível em Fonte: https://revistas.ufpr.br/abralin/article/view/52673, último acesso em 23/04/2020.

O fonema como realidade psicológica:

Sob a perspectiva psicológica, o fonema pode ser definido como uma realidade mental, como a intenção do falante ou a impressão do ouvinte, ou ambos. Essa visão foi severamente atacada pelos defensores das duas perspectivas anteriores. Uma das justificativas foi a de que processos linguísticos mentais eram não observáveis, o que demonstraria o caráter de inacessibilidade. Para Trubetzkoy, fazer referência à psicologia deveria ser evitado na definição do fonema, uma vez que ele é um conceito linguístico, não um conceito psicológico. Ele ainda afirma que o fonema é uma característica do sistema linguístico, e não da mente dos falantes.

O conceito de fonema e suas múltiplas visões foram fundamentais para estudos posteriores, servindo para impulsionar propostas que desencadeariam inúmeros estudos. Da sua concepção como uma entidade indivisível, no início do século XX, passa, com Jakobson, a ser visto comum “feixe de traços”. Assim, não é mais possível pensarmos que o fonemas e ja adquirido como uma unidade, como algo indivisível, mas que ele é adquirido por partes, ou seja, pelos traços que o constituem: os traços distintivos.

Atividade

  1. Os exemplos a seguir são casos de variação condicionada. Explique o que motivou esse tipo de variação.

    1. boa [zm] vindas “duas medidas”;

      Em “du[azme]didas”, há a realização da fricativa alveolar vozeada [z] no fim da sílaba “duas” porque é vozeada a consoante [m] da palavra “medidas” que lhe segue.
    2. ca[ɣg]a “carga”

      Em “ca[ɣg]a”, há a realização da fricativa velar vozeada [ɣ] em fim da sílaba “car” porque a consoante que lhe segue é vozeada [g].
    3. ma[ɾa]berto “mar aberto”

      Em “ma[ɾa]berto”, há a realização do tepe [ɾ] em fim de sílaba de “mar” porque ocorre junção com a vogal [a] da palavra que lhe segue “aberto”.
  2. Apresente cinco exemplos que demonstrem casos de variação livre, envolvendo vogai se/ ou consoantes.

    Exemplos de variação livre:

    1. ['saʊ] ~ ['saɫ ]: variação entre a realização vocalizada e velarizada da lateral alveolar em fim de sílaba;
    2. “de[s]te” ~ “de[∫]te”: variação entre a realização da fricativa alveolar surda e a fricativa alveopalatal surda em fim de sílaba;
    3. “de[z]de” ~ “de[ʒ]de”: variação entre a realização da fricativa alveolar sonora e a fricativa alveopalatal sonora em fim de sílaba;
    4. “c[o]lega” ~ “c[ɔ]lega”: variação entre vogal média-alta e média-baixa na realização da sílaba pretônica;
    5. “b[o]né” ~ “b[ʊ]né”: variação entre a vogal média-alta e alta na realização da sílaba pretônica.

Leia Mais

BISOL, L.(Org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: Edicupcs, 2010.

BISOL, L.; BRESCANCINI,C.R.(Org.). Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002.

CAGLIARI, L.C. Alfabetização e linguística. SãoPaulo: Scipione, 1989.

CAGLIARI, L.C. Análise fonológica: introdução à teoria e à prática, com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002. (Coleção Idéias sobre a linguagem)

CALLOU, D.; LEITE, Y. Iniciação à fonética e à fonologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

CAMARA JR, J.M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.

LEMLE, M. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática. 2000.

SILVA, T.C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 2003.

BISOL, L. e MAGALHÃES, J. A redução vocálica no português brasileiro: avaliação via restrições. Revista da ABRALIN, vol. III, no. 1 e 2, p. 195-2016, julho e dezembro de 2004.